sábado, 16 de junho de 2007

S. Francisco das Andorinhas - J. J. Letria

O homem sentou-se numa pedra,
exausto da longa caminhada,
e viu aves a voar, riachos a correr,
e rebanhos nas bermas da estrada.

Vinha de muito longe,
dos lugares da desavença
onde a guerra tudo queima
e onde campeia a doença,
e só trazia consigo o pão e a água
e o fogo de uma crença
que por ser grande e sentida
como o céu se torna imensa.

Ali ficou a descansar,
cabeça encostada ao bordão
enquanto uma andorinha
vinha pousar-lhe na mão
chilreando de alegria
e tremendo de emoção.

“As andorinhas, que eu saiba”,
disse o homem assombrado
“nunca nos poisam nas mãos
com o seu voo endiabrado”.

Ouvindo isto, a andorinha
levantou voo e partiu
passando bem rente às águas
claras do grande rio.
Passou-se isto em Alviano,
contou-me um franciscano,
numa tarde muito quente
com o sol lá no alto
ainda longe do poente.
Depois de matar a sede,
o homem, que era pregador,
dirigiu-se aos animais,
aos bravos e aos dos currais,
e também a um pastor
que ao escutar palavras tais
sentiu abrandar o calor,
reparando que os pardais,
vindos dos canaviais
também poisavam, aos casais,
para ouvir o orador.

“Eu sou Francisco de Assis
e sigo a lei de Jesus,
estive para ser militar
mas foi outra a minha cruz.

Troquei bem-estar e riqueza
por esta vida tão errante
que me faz ver na pobreza
uma luz forte e distante
capaz de transformar
a tristeza em diamante
e a doença mais teimosa
numa cura radiosa
para o rei ou para o feirante,
desde as searas da Úmbria
até às terras do levante”.

Ao ouvirem-no falar
com voz mansa e delicada
os animais e o pastor
vindos para a beira da estrada
perceberam o encanto
que podem ter as palavras
de um homem de outras lavras
a que alguns chamam de santo
por ser capaz de mudar
em riso o que foi pranto
e, sem nunca se alterar,
em certeza o que foi espanto.

Nada lhes disse de novo
o homem vindo de Assis,
mas a grande novidade
mora na claridade
daquilo que um homem diz
quando fala de raiz
em nome da santidade.

Disse-lhes que o importante
não é a riqueza terrena
que a alma por ser tão sábia
torna banal e pequena,
e mais lhes disse também:

“Na vida o que nos habita
sob a forma de um poema,
é o amor que nos visita
na madrugada serena,
é a luz que nos liberta
numa capela de Ravena,
ou o cheiro do alecrim,
da urze e da alfazema
quando outra voz nos dá vida
na festa de uma verbena”.

Entreolhavam-se as cabras,
as vacas e as ovelhas
enquanto as andorinhas
com os seus cantos estridentes
saíam debaixo das telhas
como estrelas sorridentes
pondo as papoilas vermelhas
mais vermelhas e mais quentes,
fazendo coro com as abelhas
e com o canto das nascentes.

E um cavaleiro andarilho
com um gibão reluzente
riu com riso jocoso
e com ar de grande gozo
daquele homem diferente
que falava com os bichos
ali mesmo à sua frente.

Depois partiu a galope
dizendo com os seus botões:
“Nunca se viu coisa assim:
alguém a fazer aos bichos
estas prédicas e sermões
sem lhes falar em latim”.

O homem vindo de Assis
com o seu rosto de santo
dizia coisas tão simples
e tão cheias de encanto
que os bichos e o pastor
perceberam num instante
que afinal a verdade
era feita com as sílabas
que tem a claridade
quando torna as coisas da terra
eternas e sem idade
e quando torna suave
o que foi severidade
tecendo os fios invisíveis
que soltam a nossa liberdade.

O homem que foi soldado
ergueu estandartes de paz,
falou com o sol, com a lua
e a todos foi capaz
de mostrar que a irmandade
não é uma luz fugaz
na solidão da cidade,
e do seu sonho de rapaz
tirou o ceptro do poder
e sonhou coisas a valer
como seja a piedade
que dá ao doente, ao leproso
uma nova humanidade
e um tempo de repouso
também feito de humildade.

Fundou ordens sem riqueza,
Conventos e hospitais
repartiu na sua mesa,
pelas regras da natureza,
com homens e animais
o pão branco da pobreza
e a quem lhe pediu mais
deu o canto dos pardais,
remédio contra a tristeza
que se segue aos vendavais.

“Venho de um tempo dividido
de cidades contra cidades,
de imensas ambições
e graves inimizades.
Vi Veneza e Florença,
Perugia e também Assis
divididas pelos ódios
que eu temi e nunca quis.
Troquei os combates mortais
pela paz que apazigua
e que por ser um bem sagrado
é tão minha como tua.
E arranjei como aliados
as árvores da floresta,
os pássaros encantados
da alegria que nos resta.

De todos me fiz irmão
com o sonho de conseguir
que o meu pobre coração
a todos pudesse unir.

Fui visitar um sultão
tão temível e poderoso
que me olhou desconfiado
entre o espanto e o gozo
e ao ver-me desarmado,
querendo paz em vez de guerra,
prometeu mais tolerância
nos reinos da sua terra.

Eu tinha poucos saberes,
era enfermiço e franzino,
mas tinha traçado na alma
o meu rumo, o meu destino.

A todos chamei irmãos,
ao fogo, à água e ao vento
e também ao ar tão puro
que é o quarto elemento.
Fiz do meu sonho cristão
um tecto e um abrigo
e fiz do pobre, do doente
um companheiro, um amigo.

Às aves chamei irmãs
e fiz do sonho meu filho
embalando-o no meu sono
pequena espiga de milho.

Abri escola na pobreza
para chacota dos poderosos
e juntei à minha volta
os cegos e os leprosos.

E fui andando e cantando
pelos atalhos da coragem
enquanto os senhores da terra
se riam à minha passagem,
mas eu não me importava
porque em cada um ficava
a semente e a mensagem.

Fui trovador de Deus
com uma harpa de crente,
tangendo os sons amenos
que chegam a toda a gente
e assim curei as feridas,
as chagas do sofrimento,
as mágoas do abandono
e as dores do esquecimento.

Mas nunca impus a ninguém
verdades indesejadas,
caminhando por veredas
ou pelas bermas das estradas.

E aquilo que vos digo
nestes campos de Alviano
é que não deixem, irmãos,
vencer-vos o desengano,
que eu trago as rosas rebeldes
que florescem todo o ano”.

E a esta longa fala
do homem vindo de Assis
respondeu a cabra altiva
e também a codorniz,
mais o pardal de telhado,
a raposa e a perdiz
e até o pastor lá longe
fez um sorriso feliz.

E o homem que era santo
com um coro de andorinhas
retomou o seu caminho
indo para terras vizinhas.

E nunca mais foi esquecido
pelos irmãos animais
no meio do calor que abrasa
ou durante os temporais.

E diz-se lá em Assis
que depois dele morrer
vieram as andorinhas
com saudades de o ver,
mais os cavalos do pasto
e os raios do meio-dia,
os pardais, os cães, os gatos
e a vistosa cotovia,
pedindo com jeito manso:


“Dá-nos, por Deus, mais um dia
e tange na tua harpa
a mais bela melodia
que deixe nesta cidade
como quem sente a magia
um toque de santidade,
e uma grinalda de alegria”.


E o santo pequenino
que fez do mundo um irmão
e ligou o seu destino
ao amor do coração
lá saiu a esvoaçar
imitando as andorinhas,
as gaivotas e os faisões
e enchendo o ar da tarde
com cânticos e orações
e lembrando a toda a gente
que a vida será melhor
e o tempo será diferente
se o homem for mais humano
arrastando na corrente
as flores brancas de Alviano
e o brilho refulgente
das flores de todo o ano,
que se colhem pela raiz
na mãe terra generosa
do bom santinho de Assis.



José Jorge Letria
São Francisco das Andorinhas
Porto, Editora AMBAR, 2002
Adaptação



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