sábado, 16 de junho de 2007

O toque misterioso do sagrado - Susanna Tamaro

10 de Janeiro

Fiquei feliz por saber como resolveste o problema das festas de Natal. Imaginar-te sozinha com a tua mãe, à frente da televisão, a gramar todos os programas natalícios, causava-me uma certa tristeza.
A viagem de automóvel foi uma óptima ideia. Vocês as duas, sozinhas, a viajar por toda a Itália, sem um destino preciso, que depois acabaram por encontrar. Ou melhor, como tu própria escreves: «E provável que aquele lugar nos tenha atraído desde o início, como um íman. Era para lá que devíamos ir, e foi para lá que acabámos por ir, quase sem sabermos. Para as rudes encostas do Monte Sant’Angelo. A minha mãe já tinha ouvido falar, mas eu nem sabia que existia. Nunca simpatizei com os anjos e coisas desse género. No entanto, devo dizer que, ao descer para aquela gruta, senti uma coisa estranha. Uma coisa muito parecida com uma perturbação.»
Que giro! Também lá fui, no Verão passado, com a minha mãe, só que eu fui lá de propósito, para satisfazer um desejo antigo. À medida que nos íamos aproximando, não podia deixar de pensar em Jerusalém. A mesma terra ressequida, as mesmas pedras de calcário branco, as oliveiras, os burros, a mesma longa subida para se chegar ao lugar santo. Se bem te lembras, mal se chega à igreja, tem de se começar a descer, no meio de arcos e curvas, até à famosa gruta cavada na rocha e iluminada pela luz frouxa das velas. A emoção que provoca é difícil de descrever.
As igrejas raramente me fazem sentir tão perturbada. Ou melhor, quanto mais espectaculares e mais repletas de decorações, estátuas, dourados e frescos, mais me afastam do sentido do sagrado. Claro que sou capaz de apreciar a beleza das pinturas e dos frescos, o talento dos artesãos, a riqueza da história que se reflecte naquelas obras, mas é sempre qualquer coisa que faz parte do meu domínio cultural, da minha mente estética e racional, da minha cultura.
As poucas vezes que me emocionei realmente, foi em certas capelas abandonadas na montanha ou no campo. Lembro-me sobretudo de uma: paredes nuas, altar nu, uma simples cruz de madeira, ao fundo. De repente, alguns pássaros entraram por um vidro partido, com palhas no bico, e fizeram o ninho no baixo-relevo da sétima estação da Via Sacra.
As basílicas, as catedrais, as igrejas são sempre projectos concebidos por homens para outros homens, e como tal, apesar da boa vontade dos seus artífices, dificilmente conseguem tocar as camadas mais profundas e mais secretas da nossa alma. E, no entanto, esse «toque» — o toque do sagrado, do mistério — é tão importante para o nosso caminho! E como o diapasão, que permite afinar todo o nosso ser por uma frequência diferente.
Tenta imaginar o coração como um instrumento musical. Há cordas que tocam habitualmente: a corda da tristeza, da alegria, da raiva, da dor, da distância, do enamoramento. E, por fim, há uma, mais escondida e profunda, que costuma ser difícil de descobrir, mas é justamente aquela que, ao vibrar, torna harmónico e potente o som de todas as outras. E essa corda que nos faz deixar de ser um ser-fragmento para sermos um ser-unidade.
A perturbação que sentiste na gruta é, de certa forma, o despertar da tua corda profunda. De repente, sem o teres imaginado antes, viste-te diante do mistério da Presença. Como não estavas preparada, não te defendeste e foi por isso que o espanto te perturbou. Espanto por causa de quem, por causa de quê? Será possível dizer? Não há nada mais inexprimível, mais secreto, do que esses encontros. O que se continua a sentir é o coração a bater ao de leve, a impressão de que, dentro de nós, se levantou um vento, uma força desconhecida, nova, capaz de baralhar as cartas todas.

Susanna Tamaro
O fogo e o vento
Lisboa, Editorial Presença, 2002
(Excerto)

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